No peito e na raça

JOÃO GOMES JUNIOR
Eliana Alves Cruz
Fotos: Satiro Sodré/CBDA/SS PRESS
Garçom, salva-vidas, tecnólogo, nadador, atleta olímpico. João Gomes Júnior tem muitos homens dentro dele. Risonho, engraçado, de bem com a vida, desencanado. Este atleta capixaba, de 30 anos, que disputa as provas de natação no estilo peito, passou — como ele mesmo diz —no “funil do mundo esportivo”. Ele faz parte da mais que seleta elite no planeta dos que chegaram a disputar os Jogos Olímpicos. Agora mais, ele está no estreitíssimo gargalo dos finalistas, dos que decidem o ouro, a prata e bronze. Deuses do Olimpo.
Ele será o segundo negro nos 96 anos de história da natação brasileira olímpica a chegar numa decisão. O segundo entre 256 atletas entre homens e mulheres que já caíram numa piscina para defender o verde e amarelo na maior competição da Terra. Antes dele, o baiano Edvaldo Valério foi medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Sidney, no revezamento 4x100m livre composto também por Gustavo Borges, Fernando Scherer e Carlos Jayme.
Durante a aclimatação para os Jogos do Rio, realizada no final de julho, em São Paulo, conversei por mais de uma hora com este atleta que, atrás do jeito brincalhão, esconde um homem maduro, uma pessoa forte, decidida, preparada e que sabe o momento de parar, voltar nos passos e recomeçar. Foi assim em fevereiro de 2015, quando a Federação Internacional de Natação o suspendeu por seis meses devido ao resultado adverso para um diurético em seu exame de doping realizado no Campeonato Mundial em Piscina Curta, em Doha, em dezembro de 2014, onde ganhou três medalhas de ouro. Ele conseguiu provar que tomava um suplemento lícito, permitido, mas que sofreu uma contaminação.
Foram seis longos meses vendo uma barreira dura na frente do sonho de disputar os Jogos Olímpicos em casa.
- Quando tudo passou eu fiz uma coisa que eu precisava fazer. Li tudo, absolutamente tudo o que disseram de mim. Pessoas que não me conheciam, que nunca tinham me visto, que não acompanhavam minha carreira e minhas conquistas falando coisas horríveis. Nos chamam (aos atletas) de “sugadores do governo”, de “dopados”...No meu caso tem mais uma coisa: “Tá vendo aí! Só podia ser preto!”

Não foi por masoquismo ou algum desejo mórbido de sofrer com o que passou, mas para se motivar.
— Eu ri muito. Achei tudo muito ridículo. Um circo. Quer saber de uma coisa? Não falo inglês, francês, nada... e fiquei sozinho aguardando o julgamento na Suíça. Consegui. Me virei. Essas coisas, quando superadas, dão força mental. Elas te tornam alguém muito melhor e mais forte. Então, ler aquilo tudo só me fez ter certeza de quem eu realmente sou. No momento mais confuso e complicado eu saí com um amigo para conversar, desabafar, enfim... Parei meu carro em um local e o guardador, um cara bem humilde, veio me pedir, claro, “uns trocados”. Abri a carteira, tirei tudo o que tinha dentro e dei a ele. O cara me olhou espantado. Sei lá, deviam ter uns... 300 reais? Algo assim. Ele me perguntou: “É isso mesmo?”. Queria me devolver, mas não. Eu decidi que ia começar dali, do nada, do zero. Porque foi assim que eu comecei na natação. Quando fui treinar no Esporte Clube Pinheiros (em São Paulo), o que eu ganhava dava pra pagar as contas, o lugar que eu morava e o mês acabava no dia 12. Eu comia no clube e ia para o treino a pé. Não ia jamais pedir dinheiro pro meu pai. Sei que ele me ajudaria, mas eu não queria. E consegui. Passou e estou aqui — revelou.
João começou como a maioria das crianças que se tornam atletas de alto rendimento na natação por volta dos oito, nove anos de idade. Filho de família classe média, chegou um momento em que quis ser independente, ter seu próprio dinheiro. Estava na faculdade de ciências tecnológicas, com 18 anos e foi servir de garçom em um quiosque e ser salva-vidas na praia.

— As pessoas diziam assim nos comentários das matérias que eu li: “Só podia ser preto e pobre”. Aí eu pensava: “Eu sou preto, mas não sou pobre”. Imediatamente associam uma coisa a outra. É demais isso... E daí? E se fosse pobre? A gente tem muito que andar ainda... — Comenta abrindo o sorriso embaixo de uma barba espessa, que só cairia uma semana depois, para as provas de 100m peito no Estádio Olímpico Aquático.
Os nadadores raspam todos os pelos do corpo antes das principais competições para diminuíro atrito do corpo na água. Um ritual que tem um significado psicológico também.
— Naquele momento você sabe que está se preparando pra guerra, pra dar o seu melhor. Eu levo cerca de uma hora e meia. O negócio é sério — diz, como sempre, com jeito brincalhão.
Volta a ficar sério quando retornamos ao assunto do racismo no Brasil.
— Eu me espanto e luto contra os meus próprios preconceitos. Me pego em situações que eu vejo que estou sendo preconceituoso. Todos nós temos isso. É da nossa cultura, mas a gente tem que brigar contra e conversar muito, falar, se esclarecer... É o que eu penso.
Pedi para que cantasse ou recitasse a letra de uma música que o Black Sport Club escolheu para um vídeo. Ele rebate na hora.
— Pensei que você ia dizer que seria: “Um sorriso negro, um abraço negro... traz felicidade!”
Sim, João, negro é a raíz da liberdade.