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Chico Science

África, Cibernética, Psicodelia e Santa Cruz

Ricardo Pessanha

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Meados dos anos 90, Olinda, Pernambuco. Sobre um palco montado em um campo de futebol, diante de uma multidão, um grupo de jovens músicos quebra tudo. O baque virado marcial das alfaias realça a fúria das guitarras pesadas e o vocal intenso de um carinha com jeitão meio hip-hop, meio frevo, meio mangue, meio parabolicamará. A plateia urra em transe com aquele beat embolada metal pesado maracatu. A banda chamava-se Nação Zumbi, o titular do vocal era o Chico Science, e aquele som era o Mangue Beat.

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Não é exagero dizer que o Mangue Beat espalhou-se do Recife para o mundo. Tropicalisticamente, a sua proposta ia além da música. “Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em: quadrinhos, TV interativa, antipsiquiatra, Bezerra da Silva, Hip Hop, midiotia, artismo, música de rua, John Coltrane, acaso, sexo não virtual, conflitos étnicos e todos os avanços da química aplicada no terreno da alteração e expansão da consciência”, dizia o manifesto de arremesso do movimento, escrito por Fred 04, da banda Mundo Livre S.A. O texto, anteriormente distribuído como um comunicado à imprensa, ganhou mais visibilidade quando impresso no encarte do primeiro disco da Nação Zumbi, Da Lama ao Caos, de 1994. Ainda segundo o manifesto, “o objetivo era engendrar um ‘circuito energético’, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop”.

A imagem símbolo do Mangue Beat, uma antena parabólica enfiada na lama captando sinais de todo o planeta, foi a inspiração para a gênese de uma síntese musical única, que fundia a cultura urbana do Recife com a baixa tecnologia e influências de fora do país. Foi nesse caldo alquímico que vicejaram bandas como a Nação Zumbi, cujo líder, Chico Science, foi o último gênio a surgir no cenário da música popular brasileira. Basta ouvir o segundo e mais incensado CD do grupo, Afrociberdelia (África + Cibernética + Psicodelia), de 1996, para saber do que estou falando. Aqui as letras instigantes de Chico sobre o caos e a lama, a miséria e a luta para enfrentá-la, impulsionadas por uma música poderosa e arrebatadora, fazem o Recife mergulhar de cabeça no acid jazz, no heavy metal e na cibercultura. Alfaias, guitarras psicodélicas e loops surpreendentes emolduram baiões, cirandas, rap e até lounge music, tudo impulsionado pelos vocais urgentes de Chico.

Além da música, o cara tinha outra paixão: era torcedor fanático do Santa Cruz. A sua identificação com o clube da massa, do povão do Recife, parece natural. Afinal, com a música inovadora que criou, ajudou a dar voz às massas, gritava alto o que muitos queriam dizer e não eram ouvidos.  

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Chico nutriu sua paixão pela tricolor do Recife desde cedo. Na adolescência, acompanhou a fase áurea do clube, várias vezes campeão estadual e com algum destaque nacional. Além de torcer, era um obstinado peladeiro e, durante as excursões, organizava uns “amistosos” do seu time, formado com os outros músicos da banda e técnicos, contra times locais.

Mas o destino deu uma pernada no Mangue Beat e na torcida do Santinha. No início de 1997, o músico morreu em um acidente automobilístico no caminho entre o Recife e sua Olinda natal, antes de completar 31 anos. A Nação Zumbi continua na estrada até hoje, coerente com o espírito do movimento, mas nunca mais foi a mesma.

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O que estaria fazendo a mente inquieta e exuberante de Chico Science em 2016, ano em que completaria 50 anos? Musicalmente é difícil dizer, mas uma coisa é certa: ele estaria lamentando muito a queda do seu Santa Cruz para a segunda divisão do Brasileiro.

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É bom saber que o ilustre torcedor não foi esquecido pelo clube da Cobra Coral. Em 2015, instituiu o Troféu Chico Science, disputado anualmente com um clube convidado. Este ano a taça ficou com o Santa Cruz, ao vencer o Flamengo por 3 a 1. Além disso, no álbum de figurinhas lançado para comemorar o centenário do clube, o músico foi um dos 16 torcedores célebres homenageados com caricaturas.

Tributos como esses mantêm vivo o legado de Chico Science não só como artista, mas também como torcedor e amante do esporte mais popular do Brasil e do mundo. 

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