Lutas muito além do ringue
Eliana Alves Cruz
Eram os duros anos 1960. Uma época de lutas dentro e fora dos ringues. De um lado, a paz e a integração como armamentos de guerra. De outro, o acirramento e o nacionalismo como munição. A amizade entre o Dr. Martin Luther King Jr e Muhammad Ali era dessas coisas improváveis, que somente as grandes causas podem promover.
Ali era um membro da Nação do Islã, uma organização de firme oposição à visão de mundo integracionista de King. A N.O.I (Nation of Islam) desejava a separação completa entre negros e brancos, era contra a miscigenação e desprezava qualquer iniciativa de integração. No barril de pólvora das tensões raciais e lutas por direitos civis dos negros nos Estados Unidos na metade do século 20, King era uma ponta e Malcolm X e Muhammad Ali, o extremo oposto.

MUHAMMAD ALI


As duas “facções” viviam trocando farpas. Um comentário ácido de Malcom após a célebre marcha e do discurso “I have a dream” do pastor Martin Luther King, em Wahsinghton, em 1963, dava conta do tom entre as duas correntes. Ele disse que King levou não uma marcha, mas uma farsa a Washington. Em resposta, Dr. Martin disse que a N.O.I era composta por pessoas que perderam a fé na América, que repudiavamm o cristianismo, e que concluíram que o homem branco é um diabo incorrigível. Dizia que era necessário um movimento baseado no amor e não no ódio e desespero dos nacionalistas negros. Muhammad Ali zombou do ideal integracionista em 1964.
— Eu não vou ser morto tentando me forçar às pessoas que não me querem. A integração é errada. As pessoas brancas não querem isso. Então, o que há de errado com os muçulmanos? Eu nunca estive na cadeia. Eu nunca estive no tribunal. Eu não participarei de marchas de integração – afirmava.
Um aliado de Luther King, Roy Wilkins, respondeu dizendo que" Cassius Clay (nome de Ali no nascimento) poderia muito bem ser um membro honorário dos conselhos de cidadãos brancos. Todo o azedume entre eles arrefeceu quando começaram a chegar as ameaças de morte a todos eles indiscriminadamente e suas famílias. Tudo indica que venceu a percepção de que havia um inimigo maior a ser vencido e a divisão não resultaria em nada. O campeão olímpico e ativista, John Carlos, o mesmo que perdeu a medalha por erguer no pódio o punho cerrado com as luvas pretas símbolo dos ‘Panteras Negras’, disse uma vez que se houvesse uma medalha olímpica por número de amaeaças de morte recebidas, Luther King e Ali estariam brigando pelo ouro.
Os anos iam passando e cada vez mais aqueles dois ícones da luta pelos direitos civis se esforçaram por derrubar os muros entre as fações, em prol de um objetivo comum. A ironia fina é que a amizade entre os dois só foi descoberta graças ao próprio FBI que os investigava sem trégua. Mating Luther King já estava morto em 1971, quando ativistas invadiram um escritório do FBI. Também de forma irônica, escolheram 08 de março, a noite da luta entre Frazier-Ali, pois sabiam que todos os olhos estariam na luta e a vigilância, distraída. Encontraram a seguinte transcrição de uma conversa entre C (Cassius Clay) e MLK (Marting Luther King).
"MLK falou com C, eles trocaram saudações. C convidou MLK para ser seu convidado na próxima luta pelo campeonato. MLK disse que gostaria de participar. C disse que está mantendo-se com MLK e que é seu irmão. Está com ele 100 por cento, mas não podiam arriscar, e que MLK deve se cuidar e deve “ter cuidado com eles, os whities” (termo pejorativo para homem branco)."
Os dois se uniram ainda mais quando Ali desistiu da guerra do Vietnã, numa corajosa oposição a política do presidente Lindon Johnson. Apesar da perda do título de campeão, a suspensão da licença para lutar e a ameça de cinco anos de prisão, sua imagem estava mais forte do que nunca. A imprensa questionava Luther King sobre os motivos pelos quais o lutador teria tirado o foco das questões internas para se voltar para a guerra. O pacifista citou o próprio Ali para explicar: "Como Muhammad Ali coloca, somos todos pretos, pardos e pobres, vítimas do mesmo sistema de opressão ".
Os dois ainda apareceriam juntos em um comício em 1967, na cidade natal de Ali - Louisville, no Kentucky – onde havia uma luta pelo direito a moradia. Naquele momento o pugilista uniu totalmente as forças com o pacifista.
"Em sua luta pela liberdade, justiça e igualdade, estou com você. Eu vim para Louisville porque eu não podia permanecer em silêncio enquanto o meu próprio povo, muitos com quem eu cresci, com quem fui a escola, muitos dos meus parentes de sangue estão sendo espancados, pisados e chutados nas ruas, simplesmente porque eles querem a liberdade, e justiça e igualdade na habitação.”
O genocídio negro, principalmente da juventude, é uma realidade ainda hoje. Uma bala calou Marting Luther King em 4 de abril de 1968. O Mal de Parkinson foi silenciando Muhammad Ali ao longo de décadas, embora sua simples presença fosse mais eloquente que discursos. No entanto, essas vozes ainda ecoam, pois a luta de ambos alcança o século 21 com força renovada pelas incontáveis tragédias decorrentes dos mesmos temas: injustiça e opressão.