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Um espaço conquistado na raça

Jorge Souza Santos
 

Ninguém dava nada por ele. Achavam que aquele jogo vindo da Inglaterra jamais teria espaço nas bandas de cá. No fim do século XIX, início do XX - época da chegada do futebol ao Brasil - esportes de massa eram o turfe e o remo. O futebol era uma espécie de golfe ou tênis, de hoje em dia. O esporte desembarcado em terras brasileiras pelo estudante Charles Miller, um descendente de britânicos (pai escocês e mãe brasileira de ascendência inglesa), viu serem formados times em companhias de capital inglês como o da São Paulo Railway Company, criado pelo próprio Miller, e introduzido em clubes de elite. Mas..como aconteceu a entrada da população negra neste mundo tão “high society”?

 

“... que não sejam registradas como atletas pessoas de cor”

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Segundo o livro “O negro no futebol”, do jornalista Mario Filho, o primeiro jogador de futebol brasileiro negro que se tem notícia foi Miguel do Carmo (1885 a 1932), que aos 15 anos, junto com outros garotos e rapazes do bairro da Ponte Preta, fundou o clube com o mesmo nome e que hoje é o mais antigo clube de futebol em atividade no país.

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No Rio de Janeiro, o Bangu Athletic Club foi fundado em 1904 por ingleses que trabalhavam na Companhia Progresso Industrial do Brasil, a fábrica de tecidos do bairro. No ano seguinte, o time era formado por cinco ingleses, três italianos, dois portugueses e um operário negro - tecelão da fábrica - de nome Francisco Carregal.

FUTEBOL:

Mais tarde, o Bangu encheu a equipe de negros e operários sem restrições, misturados aos ingleses. Entre eles, destacava-se o goleiro negro Manuel Maia. De quebra, o clube da zona oeste do Rio aboliu a proibição dos “pobres e mal vestidos” assistirem aos jogos na arquibancada, antes destinada apenas aos brancos “distintos”. Algo ousado, numa época em que os não privilegiados só podiam frequentar os campos de futebol na chamada ‘geral’.  

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Apesar do pioneirismo da Ponte Preta, o Bangu foi o primeiro campeão com negros em seu elenco. O time venceu a segunda divisão carioca, em 1911, com quatro negros e seis operários na equipe.  Entre 1907 e 1909, o clube preferiu se afastar da Liga Metropolitana de futebol a dispensar seus jogadores negros, após receber a seguinte mensagem: “Comunicamo-vos que o Diretório da Liga, em sessão de hoje, resolveu por unanimidade que não sejam registradas como atletas pessoas de cor".

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Nesta época, em 1907, o Botafogo Futebol Clube, um dos antepassados do atual Botafogo de Futebol e Regatas, chegou a colocar um jogador negro em campo. Mas após protestos de Fluminense, Payssandu e Rio Cricket, o alvinegro cancelou sua inscrição.

                                                                                                                                                         José Augusto Prestes

                                                                                                                                         presidente do Vasco da Gama em 1924

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Depois do Bangu, o América, os times suburbanos Esperança e Brasil; pequenos como os extintos Mangueira e Vila Isabel; e o Andaraí, outro clube de operários e proletários, também utilizaram jogadores negros e/ou operários.

O América abriu as portas aos negros por intermédio de seu presidente Belfort Duarte, que hoje dá nome ao prêmio concedido aos jogadores que não forem expulsos durante sua carreira. Um destes negros chamava-se Carlos Alberto, que anos depois, em 1915 jogou pelo mais aristocrático dos clubes de então, o Fluminense.  Envergonhado de sua origem, disfarçou a cor de sua pele com maquiagem mal feita, que saía com o suor. As torcidas adversárias não perdoaram e começaram a gritar “pó-de-arroz” para os jogadores tricolores, apelido do qual nunca mais se livraram.

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O Flamengo, hoje o mais popular do Brasil, tem sua origem na elite carioca, primeiro no remo e depois na ruptura da equipe de futebol do Fluminense. Apenas em 1917, o rubro-negro teve um jogador negro, que se tornou o primeiro ídolo nacional, o mulato paulista Arthur Friedenreich (El Tigre), filho de mãe negra e pai de origem alemã. Friedenreich começou a atuar em 1909, passando pelos paulistas Germânia, Ypiranga, Mackenzie College e Sport Clube Americano, até chegar ao Rio pelo Payssandu, voltar a sua terra pra defender o Paulistano, e desembarcar novamente no Rio.

Foto: Manuel do Carmo, um dos fundadores do Ponte Preta.

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A ruptura dos parâmetros: Vasco da Gama e os “camisas negras”

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A seguir aparece o Vasco, outro clube oriundo do remo, como o principal expoente da causa. O clube, de origem portuguesa, foi o primeiro a se rebelar de forma contundente contra o preconceito que dominava a sociedade e impedia os negros de praticarem o futebol. E foi o primeiro dos quatro grandes cariocas a conquistar um título, o de 1923, com um plantel formado por negros, pobres e operários. Time conhecido como “camisas negras” foi um divisor de águas, iniciado no título da segunda divisão em 1922 para uma conquista incontestável no ano seguinte, com 12 vitórias em 14 jogos.

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O sucesso dos “Camisas Negras” provocou um rompimento nas relações dos clubes, que aristocráticos, fundaram a AMEA (Associação Metropolitana de Esportes Atléticos) e deram um ultimato ao clube campeão sob a alegação de que o Vasco incentivava o profissionalismo ao admitir jogadores de classes inferiores pagando prêmios por vitórias, institucionalizando o futuro “bicho”. Exigiam a demissão dos 12 atletas pobres, maioria de negros, prontamente recusada pelo presidente cruzmaltino, José Augusto Prestes, que cunhou um manifesto histórico em 1924 (vide no fim), e permaneceu na antiga Liga, ao lado de clubes como Vila Isabel e Bonsucesso. Foi novamente campeão, já sem a presença dos outros clubes grandes do Rio.

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No ano seguinte, um acordo colocou todos no mesmo barco. A presença de negros ficava cada vez mais marcante no futebol. Além do Vasco, Bangu, Bonsucesso e o São Cristóvão, campeão de 1926, os utilizavam. Outros ainda resistiam. Mas a adoção do profissionalismo era inevitável com o crescente “ataque” do futebol estrangeiro sobre os jogadores, principalmente a Itália, que levava inúmeros atletas argentinos e uruguaios, que por sua vez, vinham buscar reforços no Brasil.

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O aparecimento de negros de talento imenso, sucessores de Friedenreich, acelerou o processo. O maior deles foi Leônidas da Silva, primeiro brasileiro a ser artilheiro de uma Copa do Mundo, a de 1938, na França. O “homem borracha” ou “Diamante Negro” foi tão grande que ajudou a popularizar São Paulo e Flamengo, clubes que atualmente detém a terceira e a primeira torcidas do país, respectivamente. O Flamengo, que já era popular no remo, explodiu também no futebol, quando um presidente jornalista, Sílvio Padilha, levou o clube para a Gávea, vizinho da então Favela do Pinto, e passou a contratar jogadores negros a granel, todos de talento, capitaneado pelo próprio Leônidas, acompanhado por Waldemar de Brito (que anos mais tarde, como técnico, foi o descobridor de Pelé); o ‘Divino Mestre’ Domingos da Guia, senão o único, com certeza o primeiro a ser campeão no Brasil, na Argentina e no Uruguai; e Fausto, “a Maravilha Negra”. A ousadia resultou no primeiro título do clube na era do profissionalismo, em 1939, já sem Fausto, morto precocemente no início do ano, com tuberculose. Mas aí já é outra história.

 

Carta do presidente do Vasco da Gama ao presidente da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos, Arnaldo Guinle.

Rio de Janeiro, 7 de abril de 1924

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Ofício no. 261

Exmo. Sr. Arnaldo Guinle, M.D. presidente da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos.

As resoluções divulgadas hoje pela imprensa, tomadas em reunião de ontem pelos altos poderes da Associação a que V. Exa. tão dignamente preside, colocam o Club de Regatas Vasco da Gama em tal situação de inferioridade que absolutamente não pode ser justificada nem pela deficiência do nosso campo, nem pela simplicidade da nossa sede, nem pela condição modesta de grande número dos nossos associados.

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Os privilégios concedidos aos cinco clubes fundadores da AMEA e a forma como será exercido o direito de discussão e voto, e as futuras classificações, obriga-nos a lavrar o nosso protesto contra as citadas resoluções.

Quanto à condição de eliminarmos doze (12) jogadores das nossas equipes, resolve por unanimidade a diretoria do Club de Regatas Vasco da Gama, não a dever aceitar, por não se conformar com o processo por que foi feita a investigação das posições sociais desses nossos con-sócios, investigações levadas a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.

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Estamos certos que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno da nossa parte sacrificar ao desejo de filiar-se a AMEA alguns dos que lutaram para que tivéssemos entre outras vitórias a do Campeonato de Futebol da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.

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São esses doze jogadores jovens quase todos brasileiros no começo de sua carreira, e o ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu nem sob o pavilhão que eles com tanta galhardia cobriram de glórias.

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Nestes termos, sentimos ter de comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da AMEA.

Queira V. Exa. aceitar os protestos de consideração e estima de quem tem a honra de se subscrever de V. Exa. Att.

 

Obrigado.

Dr. José Augusto Prestes

Presidente

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