Manuella Yasmin
Sempre com semblante sério, meio marrento, um tanto quanto sisudo, Rafaela parece estar sempre concentrada. Com uma trajetória de vida ainda desconhecida pelos brasileiros, Rafa mostra no tatame que é possível lutar dentro e fora de quadra com a mesma intensidade.
Com uma infância difícil, com a mãe vendendo gás na comunidade e o pai entregando pizza, as irmãs Rafaela e Raquel escolheram o esporte para ocupar seu tempo livre, mal sabendo onde chegariam depois de ter feito essa escolha. Rafa, mais nova que Raquel, vivia as sombras da irmã até que esta se viu grávida precocemente, tendo que parar de competir por cuidados com a gestação.
Na escola onde treinava em Jacarepaguá, Rafa foi vista por Geraldo Bernardes ex- técnico da seleção brasileira de judô e fundador do Projeto Social Reação, que oferece esporte para crianças de comunidade. Geraldo imediatamente viu o talento e a garra que a menina Rafa demonstrava e passou a cobrar mais dela pois sabia que de onde ela tirava a força havia também disciplina e potencial.
Dos becos da Cidade de Deus para o pódio olímpico!
Rafaela Silva derrota a judoca Sumiya Dorjsuren, da Mangólia e dá
ao Brasil a primeira medalha de ouro dos jogos olímpicos Rio2016


Primeiro, Rafa ganhava de todas as colegas de treino. E aí começou a trajetória: um campeonato aqui, outro ali. Achou bom o gostinho que a vitória lhe dava. Chegou a seleção brasileira e foi competir completando a equipe nas Olimpíadas de Londres em 2012. Até que um golpe fez o mundo da judoca virar de ponta cabeça. A peso médio (até 57Kg) usou o Kata Otoshi, técnica conhecida como catada de pernas, para conseguir um wazari. Sabia que poderia ser penalizada por isso, mas não esperava o que aconteceria; Rafaela foi desclassificada pelo feito. Por conta do “golpe baixo” foi impedida de realizar o sonho olímpico e junto com a correção dura vieram também ofensas e a culpa. Em sua conta no twitter, a carioca recebeu muitas críticas e até sofreu racismo por conta da indignação que sua atitude no tatame gerou. Segundo Flávio Canto, ele mesmo usou esse golpe na sua vitória olímpica. Mas em 2012, estava proibido.
“Os críticos disseram que eu era vergonha para a minha família, disseram que eu não tinha capacidade para estar em uma Olimpíada, que era para eu estar em uma jaula, achei que pude mostrar para quem me criticou que estou entre as melhores da categoria e que fui a vergonha da minha família, mas que posso dar alegria para eles"
Essas e outras ofensas derrubaram a judoca como nunca nenhuma outra adversária havia feito. Rafaela voltou para a casa, entrou em depressão e ficou dois meses parada sem querer voltar para o mundo dos esportes. Foi preciso ajuda psicológica e muito incentivo da família para ela voltar a vestir o roupão.
Hoje, Rafa Silva lutou até mesmo com as lágrimas. Pisar no lugar mais alto do pódio fez nossa judoca mudar o semblante e chorar. Com a medalha dourada no peito, ela sai do lugar de “decepção para a família” como muitos a acusaram e passa a ser orgulho para o Brasil.
“Se não fosse o esporte, eu estaria hoje nas ruas da Cidade de Deus. Com o esporte, estou aqui. Superei as ofensas a mim e à minha família. Treinei, me concentrei”, foram as palavras de Rafa após a luta.
E no mesmo bairro do lugar onde Rafa nasceu, a Cidade de Deus conflitada, abandonada, isolada, a que muitos temem só de ouvir o nome, que Rafa garimpou, lutou e levou. Saiu do beco, do ambiente sem sol, para uma histórica vitória olímpica. Mulher, negra, favelada ganhou mais do que um ouro, do que um wasabi. E um ippon direto que só os deuses do esporte são capazes.
Obrigada, Rafa. O Brasil agradece. O Rio de janeiro canta. E Cidade de Deus louva você.