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Um gesto, mil discursos

Eliana Alves Cruz

 

Punhos com luvas negras erguidas no ar. Cabeças baixas na hora da execução do hino americano. Pés descalços simbolizando a pobreza e os sofrimentos do povo negro. A imagem do mais polêmico pódio dos Jogos Olímpicos é um discurso eloquente que chega aos nossos dias com a mesma força. Ele traduz não uma rebeldia infantil, mas o amadurecimento de um sentimento, de uma necessidade de justiça que extrapolou as barreiras protocolares e lançou para a história os três protagonistas da cena.

PANTERAS NEGRAS

O ano era 1968 e o lugar, a Cidade do México. O americano Tommie Smith venceu os 200m rasos e seu compatriota, John Carlos, foi o terceiro colocado. Entre eles, o australiano Peter Norman. Os Estados Unidos pegavam fogo. O mundo ardia. Martin Luther King e Bobby Kenedy tinham sido assassinados. Eram tempos de acirramentos. A guerra fria estava em seu ápice. Desde que em 1955, Rosa Parks se recusou a dar seu assento a um homem branco em um ônibus, a luta por direitos civis dos negros americanos tiravam o sono da América. Entre os muitos movimentos surgidos, os Panteras Negras tiveram um protagonismo pra lá de radical. Coordenaram grupos na maioria das cidades americanas e en-

frentaram tiroteios violentos com policiais – inclusive o co-fundador do movimento, Huey Newton, foi preso por acusação de homicídio de um policial.


Com todo este pano de fundo, Tommie, John e o australiano Peter (lembrem-se de que a Austrália tinha políticas de Apartheid quase tão violentas quanto às da África do Sul) tomam seus lugares na largada. A corrida memorável, que teve o recorde mundial quebrado por Tommie (19.83), seria para sempre ofuscada pela decisão tomada pelo trio.

Os dois negros sabiam o que estavam prestes a fazer e, mais, sabiam o que iriam provocar. John Carlos recordaria anos mais tarde que perguntaram a Normam se ele aceditava nos direitos humanos e se acreditava em Deus: “Sabíamos que aquilo que íamos fazer era de longe maior que qualquer feito atlético e ele disse: ‘Estou com vocês’”. E arrematou: “Esperava ver receio nos olhos de Norman, mas em vez disso vimos amor.” Mas o apoio não ficou apenas nas palavras, pois o australiano cravou no peito um bottom do Olympic Project for Human Rights, uma organização da qual Carlos era um dos fundadores e que lutava contra o racismo no esporte.


Os dois americanos foram expulsos da Vila Olímpica, da delegação americana e o diabo amassou o pão que eles comeram durante muito tempo. Receberam centenas ameaças de morte e a mãe de John Carlos faleceria dois anos depois, em 1970, de ataque cardíaco em decorrência da pressão que sofriam de fazendeiros brancos. A família recebia, além das ameaças, ratos mortos e estrume pelo correio. As coisas também não foram fáceis para Normam, que foi afastado do esporte, esquecido e marginalizado em seu país. Apesar de ter feito o índice para os 200m rasos 13 vezes, não foi convocado para os Jogos de Munique 1972.

Os três pagaram um alto preço por agirem conforme suas consciências, mas fazem hoje parte da história. Em 2005, a Universidade Estadual de San Jose ergueu uma estátua de bronze, retratando Carlos e Tommie Smith com seu lendário gesto no pódio da Cidade do México.

Em 2008, os dois receberam o ‘Arthur Ashe Courage Award’, um prêmio para personalidades que demonstrem coragem em suas vidas.


Em 2016, 48 anos depois, Tommie Smit e John Carlos ainda teriam motivos fartos para erguer seus punhos. Um gesto, mil discursos.

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